sexta-feira, 27 de março de 2015

Tango


   O mundo girava. O corpo; dolorido. As pálpebras pesadas. Abrir os olhos tornou-se uma missão impossível para ele. Embora lhe faltasse a visão; o tato e o olfato não lhe falhavam. Estava deitado, apoiado sobre algo áspero. O cheiro era de fumaça, mas não sabia dizer o que estava queimando apesar de lhe ser estranhamente familiar.
   - Onde estou? Alguém pode me ouvir? - Perguntou, sem saber se realmente tinha alguém lá. Sem respostas verbais, algo o segurou pela cintura e o pôs de pé, enrolou algo em volta de seus tornozelos e calcanhares e o empurrou. Descobriu que conseguia andar. Seja lá para onde o estavam empurrando.
   - Olá, faz tempo que não lhe vejo - Uma voz feminina começou a falar em seu ouvido. Um tom de voz fino e suave como um vinho doce que escorre em uma garganta sedenta. - Mas você não está me vendo. O que houve? Abra os olhos.
   As pálpebras, como magia, ficaram leves, o corpo- que antes doía como se 37 facas e 2 espadas lhe perfurassem a cada respirar- estava bem e disposto. Abriu os olhos. A cena que ele viu certamente não foi agradável. Um cadafalso montado a sua frente acima de uma grande fogueira, algumas pessoas com características semelhantes em fila vestidas de branco semi conscientes, da mesma forma que ele parecia no momento anterior. Corpos pendurados no cadafalso depois de um tempo eram soltos e caiam com a leveza de um presunto em direção ao fogo. Seja lá o crime cometido, a regra parecia ser simples. Genocídio.
   Porém não encontrou a mulher. Voz tão doce não parecia sair daquele lugar, não combinava com a atmosfera fúnebre. Virou o pescoço para um lado, virou para o outro. Só via grandes homens vestidos de branco realizando a matança naquele lugar estranho. Olhou para o céu. Negro e sem estrelas. Virou-se em direção ao chão. Branco e polido. Porcelanato de boa qualidade, podia afirmar. Algo estranho para notar quando se pressente a morte.
   A ideia de morrer não lhe parecia ruim, já que não sabia nem o por quê de estar ali. É como se sua vida toda fosse um pequeno comercial de um desses "canais de música". Mais uma coisa estranha para se pensar. Música. Começou a prestar atenção na batida dos seus pés junto aos passos alheios e o dançar das chamas. E saindo de lá vinha uma mulher. Ruiva, seios não tão grandes quanto em um desenho japonês, mas num bom tamanho. Não saberia dizer se eram de verdade daquela distancia, e um olhar vazio.
   -Então finalmente me vê. Cumpriu bem sua parte do acordo. - Disse a mulher sem mover os lábios, com sua voz melodiosa que saia do nada. - Mas sua missão ainda não terminou. Precisa me conceder uma dança. - Quando disse isso, o homem se sentiu liberto, flutuando e em êxtase. Uma sensação maravilhosa que ele julgava apenas possível em sonhos ou chocolate. As batidas, as danças e as vozes tomaram forma: melodia, métrica e ritmo.
   Pegou a cintura daquela mulher que surgira. Era fria como gelo, sua mão grudara ao vestido vermelho dela devido ao frio. Começaram a dançar. Fluía com naturalidade, como se tivesse dançado aquela musica durante todos os segundos que compuseram sua ignóbil vida. Era um tango; dançavam, brigavam e se reconciliavam com os pés. Movimentos rápidos, arte e sedução. O calor se instaurava no ambiente.
   Passos rápidos, tentativas frustradas de reconciliação, meias-voltas e o calor subia. A mulher que saiu das chamas no inicio tinha uma pele fria e uma respiração penosa, agora era mais bela, quente e viva do que antes.
  Ao fim da música ela se aproximou ao ouvido do homem e sua voz reverberou:
  - Agora que tive minha ultima dança é hora de lhe pagar o que devo. - E botou sua boca sobre a dele. Era como se estivesse sugando algo de dentro dela. O fogo gerado pela dança se esvaia do ambiente e ia para ele. Se lembrou de quem era, do que fez, o porque fez e o que estava acontecendo. Deu-se por satisfeito, voltou as suas dores mundanas e como se nada tivesse acontecido, foi enforcado junto com sua horda de cadáveres.

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